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Geração Perdida de Minas Gerais
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O Extraordin​á​rio Voo do Perdiz

by Vitor Brauer

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1.
- E aí cara - E aí. - Tem muito tempo que você não passa por aqui. - Pois é. Eu tava por perto e precisava abastecer. Tem combustível aí? - Claro. Sempre tem. Vamo ali. - Trouxe umas pedras aqui de onde eu tava. - Você só achou pedras lá? - Ah sim. Encontrei uma outra coisa. - O que? Tá com você aí? - Não. - Mas o que é? - Nem eu sei direito pra te falar a verdade. - Como assim? - Bem, eu tava perto do P.O.7575, você sabe onde é né? Ali perto de Vutom. Então, tem um planeta ali que não é catalogado e não sei porque me deu vontade ir lá e dar uma olhada. Muita gente já foi lá pelo que eu vi mas ainda é um lugar vazio. Enfim, eu chutei uma pedra uma hora, mas que parecia de origem humana, quadrada assim, e quando eu peguei nela, ela desapareceu. - Que isso. - Pois é, vai entender. Mas eu to com isso na cabeça até agora. - Ah, logo você esquece. - Verdade. - A nave tá boa? Tudo funcionando bem? - Tá sim. Eu dei uma calibrada nela esses dias, na máquina de vôo, no eixo da direção, atualizei o sistema também. - Essa nova atualização você pegou lá em Karam? - Aham. - Eu conheço o cara de lá, ele é muito bom nessas coisas de software. - Pois é, eu já passei lá algumas vezes. - Ele é bem estranho né? - Aham... Mas por que que você acha isso? - Ah, ele vive pesquisando essas coisas estranhas, de pedra, planetas que ninguém foi. - Peraí, é verdade isso? - Claro. Acho até que você podia falar com ele sobre essa pedra que desapareceu. - Vou fazer isso mesmo. - Ela desapareceu e nada aconteceu? - O que? A Pedra? Não, eu comecei a ouvir uns barulhos estranhos. - Que tipo de barulho? - Parecia alguma coisa grandiosa, organizada, sei lá, como uma máquina que produz vários sons... É, eu não sei explicar direito - É, cara. Acho que cê devia procurar o cara lá de Karam mesmo. - É, acho que vou passar por lá. - Quando você passar por aqui de novo, me conta o que ele falou. - Tudo bem. - Até mais. - Até
2.
Lugar desagradável. E que cara é esse? Um homem de pouco carisma, alguém diria. Tanto lugar pra alguém ficar nesse universo. E ele escolheu justamente esse. É mas eu entendo também, não tem muito jeito, alguns se fixam em algum lugar e pronto. Deve ser bom ficar aqui também né, vai saber. Eu venho aqui sempre. Mas vai gostar de trocar combustível assim. As coisas que a gente pensa geralmente. O cara nem é tão desagradável assim. Ele até demonstrou interesse na pedra do jeito dele. Ou seria uma caixa? Quantas naves ele já deve ter abastecido? Só a minha pode ter sido mais de centenas de milhares de vezes. E a quantidade de gente que ele já deve ter visto? Talvez ele nunca mais viu ninguém também. Eu nunca vi ninguém aqui além dele. Será que eu sou o único que troca com ele? E esse barulho que ficou na minha cabeça? Que ainda está. Mas ele acabou aquela hora. É. Eu estou lembrando dele, talvez. Será que o cara de Karam vai saber algo sobre isso? Será que ele já viu alguém passar por isso? É, pode ser uma coisa normal que acontece. Alguém acha uma coisa dessa e começa a acontecer isso. Esse cara aqui também não é totalmente confiável. Mas por que? Com base em que que eu acho que ele não é confiável? Talvez no jeito que ele conversa. O interesse dele na pedra foi meio suspeito. E Karam fica meio longe. Qual o nome dele? E qual o nome do cara de Karam? Ah, eu sempre encontro ele lá. - Abrir porta.
3.
- Iniciar decolagem Tudo certo. "Ei, e aí, tudo bem? Bom te ver." Tudo certo. "Ahn? Aham, tudo certo. Sim, parece que vai dar certo. É, tomara né? Você vai tá aqui né?" Aqui. "Foi bom mas eu não tava muito animada. Você sabe como é que eu sou. Antissocial. Enfim. Achei. Acho até que ela gostou de vocês. Vive falando nos telefonemas. Aham. Sério? E depois que vocês foram embora tudo ficou um pouco mais pesado. Acho que eu tava com tanto medo que ela descobrisse. Acho que foi isso que deixou tudo óbvio. Ou sei lá." Pesado. "Só sei que eu não queria que ela tivesse percebido. Você consegue imaginar? E foi eu quem causou tudo." - Calcule a rota até Karam. Calcule outra rota. Não gosto muito de passar por aqui. - Esse caminho é melhor, vou por ele mesmo. Não sei se vou conseguir entregar as pedras no Eanspat. Esse planeta é até bonito por fora. Eanspat. Outro nome desagradável. Desagradável mesmo. Parece que embola a língua pra falar. "Não, ninguém disse nada. Acho que ela não queria me confrontar mesmo, ou talvez... Pra não ter certeza mesmo. Mas assim foi melhor.” Eanspat. “É, eu sei.” Bonito “Tá indo bem. Eu tô com um monte de ideia.” Desagradável. “Mas às vezes eu fico me perguntando mesmo se tá certo isso.” Bonito. “Essas coisas que eu faço, sei lá.” Certo. “Não, não sei, talvez seja, sei lá, coisa que colocaram na minha cabeça mesmo. Talvez seja verdade. Por que que eu faço essas coisas? Daí eu realmente, eu não sei. Me faz sentir bem mesmo mas me aprisiona, entende?” Que que tá acontecendo? “Eu não sei mais viver de outro jeito, e é tanto drama. Quais são as vantagens mesmo.” Bonito. “Bem, foi bom te ver.” As palavras. “Não, me desculpa, me desculpa por não ter ido no seu aniversário. Mas cê sabe... Uhum." Algumas coisas são bonitas de fora. As palavras. "É, não importa agora. Cê lembra aquele dia que eu te contei de um sonho em que eu percebi que eu tava sonhando e aí eu começava a fazer um monte de loucura. Não, claro que era né.” Loucura. “Uai, porque sim. Porque sim. Eu não ia querer te contar.” É curioso como nave parece com navio. Mas voa. “É só que às vezes eu queria estar naquele sonho, sabe? Fazer tudo sabendo que não é de verdade, que não vai machucar ninguém.” Uma mistura de navio e ave. “E até as coisas bobas mesmo, sair voando, batendo nas pessoas pela rua ou virando pássaro. Pássaro. “Pássaro." Quem foi a primeira pessoa a dizer a palavra nave? E de onde vem as palavras? "Sei lá. Nos sonhos a gente não tem história e nem cicatrizes.” História. “Nos sonhos tudo parece tão fluido sabe, difícil de pegar.” Sonho. “Tudo tá lá, mas são aquelas sutilezas incoerentes que fazem a gente ter a vontade de testar. Se jogar, sei lá. Porque a gente sabe que não vai ser a única tentativa. Ou pelo menos os meus sonhos." De onde vem as palavras se não da cabeça de alguém? Alguém feito eu. É. "Mas as minhas noites tem sido estranhas. Eu não tenho sonhado tanto. Enfim, cê já teve isso? Mas, se você pudesse passar um dia todo assim... Que que você iria querer fazer hein?" Antes das palavras existiam os sons. Antes dos sons existia o silêncio. O silêncio do espaço. Talvez o espaço tenha seu som também. E suas palavras. Só a gente que não ouve ainda. Ainda. Deve ser um som bonito. Bonito. Certo. Tudo certo. Enfim... "Sabe... Enfim, eu tenho que ir. A gente se vê. Não some, hein? Tchau."
4.
O que fazer? 01:34
Você vai ignorar o que acabou de acontecer com você? Você ouviu a voz de uma mulher, falando de um jeito estranho. Parecia algo bonito. Uma caixa no meio do deserto. Isso aconteceu por causa da caixa. Todos os sons me atingiram de uma forma muito bonita. Tenho de parar de pensar em coisas bonitas. Bonito, bonita. Bonito é belo. Belo é bonito. A caixa permanece em minha mente. Ela se tornou parte de mim, talvez. Isso é bonito. Mas o que é bonito? É uma coisa agradável. Mas mais que isso. É uma coisa bonita. Tenho de ver o que é isso. A gente pensa umas coisas. Uma mulher na minha cabeça. Falando com alguém. A voz é bonita. Por que é a única voz que ouço? A voz não estava na caixa. A voz é uma coisa nova. Nova. Nova. Os sons que a caixa fez eram novos. Novos e bonitos. Mas acho que não eram humanos. Pareciam máquinas que não cessavam. Os sons de uma nave. Os sons de um computador. Os sons programados de algum lugar. Os sons eram organizados. Eram ritmados. Ritmados. Ritmados. Eu devia ter falado isso. Será que o cara entenderia? Acho que ele nunca passou por isso. Então não. Mas alguém já deve ter passado. Os sons eram bonitos. Eram belos. Belo. Bonito é organizado? Não. A voz da mulher não é organizada e é bonita. O que fazer?
5.
Aproximando do planeta Karam. O que fazer num planeta mercantil? Gente demais, barulho demais, o único lugar com mais gente que eu conheço. Como as pessoas se encontram lá? Todo mundo quer alguma coisa no final das contas. Mas o que eu quero? Eu sei o que eu quero. Quero falar com o cara estranho que eu não sei o nome. Voz. Eu tenho uma voz estranha. Como será a minha voz? As pessoas são definidas pela voz. A caixa será que o cara vai saber? Seria bom se ele soubesse, mas tenho a impressão que não. Não. A voz não te define. A imagem te define. É, sem dúvida, a imagem te define.
6.
A confusão 04:18
- Tudo certo? Tudo certo para aterrisagem? Tudo certo. - Conferir o filtro. Tudo certo. - Iniciar aterrisagem. "Já faz muito tempo e essas coisas não passam. Eu não consigo ver nada. Eu não consigo me concentrar. As coisas estão tão confusas e a minha visão está tão turva. Eu devo estar enloquecendo." Enlouquecendo. "Disseram que ia passar. Não é isso que dizem sobre o tempo? Que ele cura tudo, todas as feridas? Não é isso que dizem? E pra que?" Pra que? "Nada passa. As coisas não vão embora. Elas só estão aí se acumulando nas minhas pálpebras pra eu não poder ver mais nada. E eu só tenho sono. Tanto sono." Nossa, até quando? "Isso nunca vai embora e ninguém pode fazer nada, porque é tudo na minha cabeça, é tudo em mim. Você se lembra da época quando nos conhecemos?" Não. "Você lembra de como eu costumava ser leve?" Não. "Eu acreditava que ia passar. Mas já se passou tempo demais e eu ainda aqui, lamentando a mesma ferida. Essa ferida que agora é maior e faz parte de mim. Nada nunca mais foi igual e eu nunca mais fui a mesma. Agora eu percebo que não vai voltar porque nada volta e nem se vai. Faz parte da construção de quem somos. E eu agora devia aceitar que não sou mais aquela que você conheceu. Hoje eu ando nas ruas e tudo que eu consigo ver é o desenho da calçada. Só vejo tudo que está quebrado dentro de mim. E por quanto tempo mais? Até que eu morra? Até que eu me esqueça? Mas quando é que vai ser isso? Quanto tempo vai durar?" Quanto tempo vai durar? Quanto tempo vai durar? Era isso que eu perguntava quanto tocaram os sons na minha cabeça. Uma hora eles simplesmente acabaram. Pra que que as pessoas se juntam ainda? Por que tem gente que mora aqui em Karam? Gente não tem muito interesse um no outro. Muita gente fica sozinha. Mas somos muitos ou poucos? Pelo universo existe muita gente. E algumas pessoas se juntam aqui. Mas qual o interesse delas? Talvez alguém falou que aqui era um lugar pra se encontrar e fim. As pessoas só perambulam por aí. Sem interesse e sem lugar. As pessoas não discutem. Olha lá. "As horas passam mas não completam os dias." Vivem trocando coisas. "Os dias passam mas não formam os meses." E tá tudo certo. "E isso é tudo porque eu não consigo ver." Aquele homem e aquela mulher se conhecem? "Só vivo a madrugada e na madrugada nada passa. Nada me traz a resposta do que que eu devia fazer..." Por que as pessoas querem trocar coisas? "Pra poder viver sem desejar qualquer coisa eterna, qualquer fim." Eu conheço alguém? "O fim da dor ou o fim dos dias." Acho que não. "Eu me arrasto sem saber... Eu não conheço ninguém "Até quando ou se nunca mais" Nunca mais. "Ou se ainda espero pela passagem de tudo que conheço" Tempo. "Até que nada mais dure, viva." Há quanto tempo eu estou sozinho? "Até quando tudo vai estar destruído." Tempo. "Até quando tudo vai ficar tão destruído quanto eu." Há quanto tempo as pessoas ficam sozinhas? "Ou até quando eu sorrir o gosto do esquecimento e nada mais vai lembrar do dia..." Há quanto tempo isso existe? "Em que eu pensei que já não pensava." E há quanto tempo esse lugar existe? "E duvidei da minha própria sanidade. Sem nada em que me agarrar ou sem o desejo de me salvar." Mas porque as pessoas ficariam juntas afinal? "Entregue a loucura. Conformada. Maldita." Loucura. "Doente. Louca." Doente. Abandono. Enfim...
7.
- E aí? - E aí, cara? Fantástico te ver aqui. Como estão as pedras por aí? - Calma. Que pedra que você tá falando? - Você não gosta de pedras? Não fica viajando por aí pegando pedras? - Ah sim. Verdade. - Então, o que você me traz de novo? - De novo. Pois é, aquele cara sozinho que vende combustível. - Todo mundo é sozinho cara. De quem você tá falando? - Ah tá. Não sei o nome dele. Bem, um cara sozinho que vende combustível num planeta aí, me falou pra te procurar porque eu achei essa caixa estranha num planeta deserto. Um planeta que não tem quase ninguém, mas que alguém já foi lá. Eu encontrei essa pedra, ou caixa, que na hora que eu peguei nela, ela desapareceu. - Ah, não! Isso acontece, é, isso é normal. - Não, mas espera, eu comecei a ouvir uns barulhos na minha cabeça depois que eu peguei na caixa. - Não, peraí, me explica isso aí direito. Vem aqui no canto.
8.
"Espera" 01:36
- É, só você que ouvia os barulhos? - Eu não sei, eu tava sozinho. - Mas o que que você tava fazendo lá? - Eu não sei também. As pessoas vão pra lugares cara. Não tem motivo. - Não. Tá bom. Mas essa caixa, que barulhos eram esses? - Então, parecia uma máquina de sons, todos organizados e que ficaram dentro da minha cabeça durante um tempo na minha cabeça e depois parou. - Depois parou? - Sim, por que? - Só curiosidade mesmo. - O que? - Olha, isso não costuma acontecer não. - Como assim? - Você é o primeiro cara que chega aqui falando sobre alguma coisa desaparecer na frente dele e uma máquina que produz sons na cabeça. - Primeiro cara que chegou pra você talvez. - Não. Eu sei de todo mundo que passa por aqui. E geralmente eles me procuram quando é uma coisa estranha, como você fez. - Mas calma aí. O que é a caixa que eu encostei? - Então meu caro, eu não sei. Como eu disse, isso não costuma acontecer. Vem aqui. Como que era a caixa? - Tinha uma forma de cubo, mas que os cantos não eram pontudos assim, parecia algo feito por alguém e não uma pedra de um deserto qualquer. - Mas era uma pedra? - Não cara, era pesada feito uma pedra. Mas era um cubo, alguém construiu aquilo. - Mas abria? - Não sei. Ela desapareceu. - Nada desaparece. Ela desapareceu pra onde? - Você mesmo disse que tem gente que te procura aqui falando que algo desapareceu na frente deles. - É. Mas é raro. - Mas e aí? - Mas e aí o que? - Você não tem nenhuma resposta? - Então meu caro, não. - Então tá, de toda forma obrigado... - Espera!
9.
- Então cara. Tem uma pessoa que pode te ajudar. - Quem? - Um especialista. Ninguém sabe muito bem. - Quem? - Um historiador dizem. - Um o que? - É. Um historiador é um homem que estuda livros. - Livros tipo o que? - Livros, cara. Não pergunte. - Livros. - Olha, você pode encontrar ele lá no planeta Immanuel. Sabe onde é? - Não. - É no PO 89025. Só colocar lá no seu sistema de navegação. Aliás, a atualização tá boa? - Tá sim. - É, às vezes eu me pergunto, sabe? Qual o motivo de eu continuar fazendo essas coisas. A gente não atualiza mais nada nessa vida. - É. - Mas é tão bom. Eu me sinto tão bem. Acho que é por isso? Você se sente bem caçando suas pedras não? - Me sentir bem... - Deve ser ótimo ficar indo nesses planetas cavar. - Eu não me pergunto isso, eu acho. - Uma das pedras era uma caixa que tocou barulho na sua cabeça e você não se pergunta isso? Que cara estranho. - Você é um cara estranho. Enfim, deixa eu ir. ABRE A PORTA - Só você chegar lá e perguntar sobre o historiador que eles vão te responder - Tudo bem. Obrigado. - De nada cara. Volta aí pra me falar o que ele te disse depois. - Tá bom. Pode fechar. Espera! Ei, qual é seu nome? - Eu sou o cara do software, cara. - Tá certo. Pode fechar. O cara do software. As pessoas tem nomes? A minha nave tem um nome: perdiz. Alguém chamou ela ou eu chamei ela assim. Não sei quando nem como. Ninguém chama ela de perdiz. Ninguém sabe que é o nome dela. Me sentir bem. Como deve ser se sentir bem? Eu não sei. Talvez eu me sinta bem quando eu procuro as pedras, minero as pedras. Sim, eu me sinto bem e é isso. Mas eu senti uma coisa diferente quando eu ouvi aqueles sons. Quando eu ouço aquela mulher. - Tudo certo. Iniciar decolagem. Feche os olhos pra se lembrar melhor. Feche os olhos. Eu me sinto diferente. Feche os olhos. Feche os olhos. Ouça.
10.
"Naquela madrugada, como em muitas outras, eu tive sono mais uma vez. E só com um dos meus olhos abertos, eu não soube dizer das distâncias ou do tamanho das coisas pequenas e das mais extraordinárias. Eu tive sono mas não consegui dormir. E o desespero da insônia fez de mim a mais fraca das pessoas, o mais ausente dos amores, a mais egoísta das filhas. Eu tomei minha dose de desapego na esperança de só ver de novo sob a luz do dia seguinte. Mas não adianta bolar as horas. Nada se pode com o tempo. Menos ainda quando se está afogada na quietude de toda falsa desilusão. Nada se pode quando se está sozinho. Nada eu posso sem você. No ritmo em que a cidade correu pela janela do peso e da leveza. E nem importava. Quando as minhas mãos e os meus pés já não podiam se mover ou quando eu senti o meu coração se acalmando, eu já não soube dizer da dor e do amor, e nem importava. Eu nem soube o que dizer quando pela manhã você me arrastava tentando estancar a sua dor em razão da minha. Hoje eu não posso negar o que é memória. Mas o tempo ainda corre e nós vamos flutuar por ele. Sempre pra cima e sempre crescendo até o dia da nossa morte. Tudo que somos e tudo que já fomos vai mudar e vai continuar mudando enquanto estivermos vivos. Nós vamos perseguir tudo em que acreditamos. E quando os nossos pulmões estiverem vazios nós vamos nos apoiar um no outro e puxar todo o ar de volta. Esse é o ar que nos vai alimentar. Esse é o ar que vai fazer bombear o nosso sangue. E esse é o sangue que vai esquentar o meu peito pra continuar forte. Nada vai ser mais duro do que eu e nada vai ser triste o bastante ou fundo o bastante que me faça desistir. Nada vai ser maior do que os nossos olhos quando eles se encostarem até que eu possa ver o seu interior. E pelos meus próprios olhos eu possa te mostrar que nada é maior do que a minha vontade de viver só pra poder te ter. Mesmo sem saber explicar ou raciocinar. Mesmo depois de tudo que eu fiz e mesmo depois de tudo que aconteceu. Todas as ilusões e o cansaço vai continuar. Toda a dor ainda vai estar presente. Os rios vão continuar correndo em direção ao mar. Os oceanos vão se alastrar até o dia em que vamos viver nos nossos barcos e submarinos, junto com todos os peixes. Até o dia em que vamos voar para o sol e viajar entre os astros. E isso não vai importar. Porque estaremos juntos. E mesmo se não estivermos vivos, o nosso amor vai continuar e nada vai importar. E nem mais importa agora. Porque sempre vai acontecer e já está acontecendo agora."
11.
O sono 01:07
O que aconteceu comigo agora? - O que aconteceu comigo? Batimentos cardíacos reduzidos, suspensão temporária da atividade perceptivo-sensorial e motora voluntária? - O que aconteceu comigo? Houve uma alternância de consciência causada pelo sono? Sono. Eu fiquei de olhos fechados durante tempo demais. Isso foi sono. Eu me sinto mais fraco. E se alguma coisa tivesse acontecido enquanto isso estava acontecendo comigo? Quando eu fecho os olhos o mundo continua lá? Eu não sei. Eu preciso de ajuda.
12.
O tempo 02:26
Tempo. Tempo demais. Mas como eu sei que eu fiquei de olhos fechados muito tempo? Parece que foi agora. Mas estamos mais próximos do planeta Immanuel. Por que eu estou me sentindo como se eu estivesse menos forte do que antes? Alguma coisa aconteceu. E é por causa dessa caixa, e eu senti como se eu estivesse dentro da vida daquela mulher. Não foram imagens, foi uma vida de verdade. Aquilo foi uma vida. Eu estava lá e agora estou aqui. Tempo. E aquela confusão na vida dela. Ela parecia viva, mas parecia confusa. Parecia se sentir bem? Talvez não. Mas como eu saberia? Quem é essa mulher? Eu sou aquela mulher. De alguma forma estranha eu me sinto identificado com ela. Tempo. Tempo. Quando aquilo tudo aconteceu? Sem dúvida é num tempo há muito tempo antes do meu. E as palavras que ela usou. Forte demais. E eu me senti mais fraco depois de ver tudo aquilo, depois de viver tudo aquilo. Alguma coisa está acontecendo. Sem sombra de dúvidas. Isso é óbvio. Isso é claro. Mas como as pessoas mudam nesse tempo. Tempo. Alguma pessoa já passou por isso? A vida é uma coisa curiosa. Curiosa de fato. Como chegamos nesse ponto? Aquela mulher parecia que ela tinha um motivo, algum motivo. Qual motivo? Por que eu fui naquele planeta? O que é essa caixa? As pessoas não precisam de motivos pra ir num lugar qualquer, visitar um planeta. Mas por que eu me sinto como se eu tivesse sido levado até lá? Claro que não. Foi o acaso. O acaso. Tempo.
13.
Agora resta pouco tempo pra chegada no planeta Immanuel. As estrelas são realmente bonitas. Realmente belas. Uma palavra que já faz parte da minha vida, eu acho. Como que isso foi acontecer comigo? Deve ter havido um tempo... Deve ter havido um tempo em que as pessoas olhavam pras estrelas e as achavam belas. Mas esse tempo não existe mais, se é que já existiu. De onde viemos afinal? O cara do software sente algo a mais que as outras pessoas. Cada um ainda é muito especificamente ele próprio, não é? Cada um é si mesmo. Não nos tornamos iguais por causa desse tempo. Por causa desse tempo. O tempo não existe mais. Eu voltarei e o cara do software ainda vai estar lá. E eu voltarei, com certeza. Eu posso nunca passar por lá. Mas eu continuarei aqui eternamente e ele também. Ele pode sair de lá um dia. Mas nunca sairemos desse universo. Como uma caixa é simplesmente uma caixa? Um homem é simplesmente um homem? Uma mulher é simplesmente e derradoramente uma mulher? Como uma caixa pode simplesmente desaparecer? Como aquela mulher simplesmente desapareceu? Talvez ela ainda está por aí. Mas por que eu sinto como se ela não estivesse? Talvez ela caiu no sono até se sentir fraca demais. Como se a minha nave desaparecesse por entrar num buraco negro ou algo do tipo. O que acontece com quem entra num buraco negro? Não sei. As estrelas irradiam luz. As pessoas não. As estrelas são belas. As pessoas também. Talvez... Qual a imagem que as estrelas tem da minha nave? A minha nave que eu pintei. Mas eu pintei ela mesmo? Faz tanto tempo.
14.
A chegada 02:17
- Iniciar aterrisagem. Vou responder agora todas as perguntas. Tenho certeza. Estou me sentindo como aquela mulher no auge de sua confusão. O que ele vai me dizer? O historiador. O historiador deve ter achado uma caixa parecida. Ele deve ter passado pela mesma coisa que eu passei. Passei. Que eu tenho passado. Tem alguma coisa acontecendo de fato. Todas essas palavras e esses momentos. Eu estou me sentindo de uma forma esquisita. Como se eu estivesse esperando algo acontecer a qualquer momento. Os sons e o tempo. Aquela mulher e os sons da minha cabeça. A relação é clara. Só que eu não consigo vê-la. Os sons. Os sons eram repetitivos às vezes. Existiam algumas partes dentro do tempo que ele tocou na minha cabeça que eu pude reconhecer. Aqui e ali. E aquilo me fez bem. Me fez eu me sentir bem. Agora consigo ver que aquele som faz parte de mim e sempre faz parte de mim. Como se só eu carregasse esses sons. Quem os fez afinal? Uma pergunta que desemboca em outras tantas. Uma vida que desemboca em outras tantas talvez. Impossível respondê-las. Até agora. - Abrir porta. Muita gente. Uma fila. Eu tenho um problema urgente. Ninguém vai se importar. Como será que eu acho o historiador? Deve ser aqui, deve ser agora. Tem de ser aqui e tem de ser agora. Tem de ser mesmo? Todas essas pessoas estão indo vê-lo. Devo esperar? Não, vou passar por todas elas e ninguém vai discutir nada. Ninguém vai me interromper. Tenho um problema urgente. Eles vão entender, tenho certeza. Todo mundo vai entender com o tempo. Me desculpe, me desculpe. Tenho de passar. Tenho de passar. Obrigado. Não existem mais discussões. Eles entendem. Temos todo o tempo do universo.
15.
- Você tá vendo esse relógio? Sei que você sabe o que é um relógio. Então você tem três minutos. - Tudo bem. Estou me sentindo muito diferente ultimamente. Antes eu me sentia forte e contínuo. Agora eu estou me sentindo fraco. Acho que estou doente. - Doente? - Sim, doente. É uma palavra que veio na minha cabeça agora. E tudo isso aconteceu por causa de uma mulher do passado que agora está dentro da minha cabeça e eu vivo a vida dela quando eu entro no sono e eu fico muito tempo de olhos fechados sem ver o mundo. - Uma mulher do passado? - Sim, e ela passou por tanta coisa. Ela viveu uma vida de fato. Não é uma alucinação ou algo do tipo. É real. Eu senti aquela mulher e aquela vida. Eu sei quem ela é. Quer dizer, eu não sei quem ela é. Mas por alguns momentos eu sei que eu fui ela. - Você foi ela? - Sim, e tudo isso aconteceu porque eu encontrei uma caixa, um cubo construído por alguém, mas que tinha as pontas arredondadas, no meio de um deserto de um planeta que as pessoas já foram, mas não tinha ninguém lá. A caixa desapareceu quando eu encostei nela e os sons ficaram na minha cabeça. Sons ordenados, ritmados, repetitivos. - Sons. Sons? - Sim, sons. Você sabe o que são os sons não sabe? Você tem de saber o que é isso. Eu sei que você sabe. - Tá bem. Então você foi a um planeta deserto em que ninguém vai há muito tempo. Qual o nome do planeta? - Eu não lembro. - E o que é que você foi fazer lá exatamente? - Eu procuro pedras e troco elas por combustível e outras coisas para continuar viajando pelo universo. - Um planeta deserto e você encontrou uma pedra. - Não era uma pedra. Era uma caixa preta, com as pontas arredondadas. - Que continha... - Não sei, que continha sons que entraram na minha cabeça e tocaram durante um tempo. - Tocaram... - É tocaram, os sons tocaram, como toca esse som. - Como você sabe o que é tocar? - Eu não sei. - E como você chegou até mim? - O cara do software de Karam falou que ele nunca ouviu falar sobre isso que aconteceu comigo e que só você poderia saber. - A mulher... - Pois é, eu sei que a mulher é do passado. Sim, do passado por causa do jeito que ela fala e age, as palavras que ela usa e que a gente não usa. E sobre o que ela fala também. - Quais palavras? - Sonho, perda, família, bonito, tempo, amor. Até o jeito que ela fala sobre ela. - Entendi.
16.
- Você deve se perguntar até onde você está disposto chegar pra poder conhecer o que acontece com você. Há várias palavras que foram esquecidas por nós todos. Mas que nunca deixarão de existir. Dormir, morrer, desconhecidas por muitos, mas que ainda existem em alguns livros antigos. É isso o que eu sou, um homem que conhece livros antigos, que conhece palavras antigas, formadas em tempos ancestrais, forjadas em tempos e espaços antepassados. Sei de sua confusão nesse momento. Garanto que ela durará ainda algum tempo, mas é passageiro, não se preocupe. Você vai acabar esquecendo tudo isso, afinal, temos a vida eterna. Em algum momento de nossa história, adquirimos a capacidade de viver eternamente. Sei que essa é uma palavra também estranha, mas que você já consegue compreender o que ela significa, ainda que de modo superficial. Você agora é um ser que conhece o conceito de tempo e que logo vai se questionar se o tempo desaparece. Morrer. Morrer não é senão desaparecer para outro. Dormir e morrer, palavras sem uso e sem fim num tempo como o nosso. Nossos antepassados viviam e morriam. Viviam e desapareciam. E, embora você não saiba o que é morrer, embora vivamos eternamente, não há como negar a herança ancestral que recebemos. E que está nesses livros. E que está na arte. O que você ouviu, os sons ritmados e organizados que te tocaram e te mudaram é arte. A beleza que você passou a sentir faz parte da arte, uma representação em um espaço e em um tempo, que se tornou cada vez mais complexa e que, um dia, acreditamos ser a eternidade do ser humano. Sim, um dia acreditamos que a eternidade era conquistada pela arte, pelo medo que possuíamos da morte. Medo de desacontecer para os outros. Os sons que você ouviu e achou belos são música. Seus sons organizados e ritmados são música. Não há espaço para isso em uma sociedade como a nossa. Sociedade, outra palavra. Sociedade, um grupo de pessoas que vivem juntas e sem saber muito bem além do fato de que vivem juntas. Você já se perguntou por que vive e encontra as pessoas que encontra? Sim, eu sei, você é um homem sozinho. Somos todos nós. Não mais sentimos que pertencemos, no fundo, uns aos outros. Que, sim, deveríamos encontrar as pessoas e com elas desenvolver nossa vida. Me diz, alguma vez você sentiu amor? Você não conhece o amor; tampouco eu. Nossa sociedade aprendeu a afundar os sentimentos no mais fundo de nós mesmos. Sentimos, sim, desprezo, carinho, nojo... Mas esquecemos sentimentos que nos tornavam mais humanos uns para os outros. Por isso, procuro palavras de outrora porque sei que elas ainda podem me fazer mais humano. E ser mais belo. Isso que eu sinto pode ser considerado equivocado, ou mesmo, irracional. Nos tempos em que as pessoas sentiam de fato, pensar assim era considerado romântico, piegas, não sei. Em nosso tempo, em nossa sociedade, não é senão raro. Raríssimo. Sua experiência com a música te define agora como humano, sensível e confuso. Pra mim, você é mais humano agora que a maioria de nós. Ainda existem alguns de nós que possuem mínimos resquícios desses sentimentos do que você passou a ter, embora não tão fortes quanto os seus. Senso de humor, ódio, até desejo por algo. O que eu tenho são esses livros. Você vai ter de decidir o que pretende ser a partir desse momento.
17.
- Espera. Você falou muita coisa. Os seres humanos antigamente faziam esse tipo de coisa, uma coisa que tocava uma vez na sua cabeça e depois desaparecia? - Exato. A arte foi se tornando mais efêmera e instantânea com o passar dos tempos. Até que, em algum ponto, algum artista pode ter feito uma obra que só podia ser ouvida uma vez. Ou então uma pessoa colocou uma obra que já existia, num dispositivo para ser ouvida só uma vez. O que provavelmente deve ter acontecido com você. - Mas qual o sentido disso? O sentido de se fazer arte? - Para se viver pra sempre. - Mas nós já vivemos. - Justamente por isso que as pessoas não fazem mais arte, não fazem mais sexo, não constituem famílias. O prazer de todas essas coisas talvez só seja possível com o temor da morte. - Então deixa eu ver se eu entendi. Esse cara dum passado distante, deixou essa caixa pra alguém um dia ouvir e dar continuidade a vida dele? - Não, não é exatamente isso. As pessoas não sobreviviam como a gente. As pessoas continuavam vivendo como memória. Ou como vestígios de suas vidas passadas. Memória é outra palavra importante pras civilizações antigas. Rituais e simbolismos eram fortemente relacionados à ideia de memória. Quando, por exemplo, algum ente querido morria cada indivíduo em cada sociedade agia de uma forma diferente, tanto para honrar seus mortos quanto para fortalecer a união familiar e ancestral, uma herança cultural, diriam. Não existe mais esse tipo de coisa hoje. O indíviduo não conseguia viver sozinho como a gente vive, então a única forma era se ligando uns com os outros. A arte pode ser considerada como a mais forte ligação entre os seres humanos, no sentido de que partia do âmbito pessoal para o universal. Existiam pessoas que eram ouvidas, observadas e seguidas por gerações e gerações de outras pessoas que não tinham nenhuma ligação familiar ou sanguínea com elas. - Mas qual o sentido se eles morriam? - Essa é a pergunta que só você pode descobrir eu suspeito. O que você está sentindo, essa fraqueza, pode desencadear outros acontecimentos que levariam a uma possível morte, suspeito. - Como assim? - Sim, a ligação de forma instantânea com tal ancestralidade pode ter te dado a mortalidade, junto com a dúvida, a incerteza e até um sentimento raro de mudança. A morte é, porque não, apenas uma mudança.
18.
- Não. Isso não pode ser assim. - Por mais que você negue, vir aqui e buscar respostas só indicam a sua doença, sua dúvida e o seu medo. No entanto, como eu disse, você pode tentar continuar e eventualmente irá esquecer, desconfio. Se tentar ir até o fundo da sua experiência que não vai. Esquecendo é possível que continue vivendo a mesma vida, sua vida padrão. Novamente, você deve escolher qual vida vai viver. Um sentimento profundamente humano. - Mas você também, vocêé autoridade de que? quem é você pra falar isso de verdade? - Eu sou historiador. Estou resumindo o que eu me lembro de ter lido. A memória dos humanos ainda é seletiva. Se você trouxer um livro para mim que nega tudo o que já disse, poderei pensar diferente amanhã. Agora, se você ler todos esses livros que tenho aqui, só vai entender que o que eu te digo é real. - Mas, você tem alguma lembrança dessa época? Você viveu nessa época? Por que você não morreu? - Não. Não é isso. Eu estudei isso, mas eu não tenho a ligação que você possui com essa obra ou com alguma obra. O que tenho é pouco. Livros de documentos. Registros. Você recebeu num estopim mais sentimentos que toda nossa humanidade já deve ter recebido nas últimas, não sei, centenas de milhares de anos. Meus livros são apenas pedras, na verdade do jeito que você minera suas pedras, eu minero meus livros, eu minero o passado. E, olha bem, acho que isso não deveria ser desperdiçado. Você poderia escrever sobre isso que está sentindo e produzir algo novo. Mesmo que seja algo antigo que tenha te feito você escrever, será uma coisa nova, porque isso não existe e nunca foi feito antes talvez. O novo nos tempos atuais não é nada mais do que o antigo de novo. - Mas como você explica a mulher? - Eu não sei o que você sentiu em relação a essa obra e a essa mulher. Eu não sei explicar. Essa mulher pode ter sido uma ancestral, talvez sua mãe, talvez sua avó, talvez um grande amor, eu não sei. E não existe maneira segura de isso se explicar. - Mas você nunca leu nada sobre isso nesses livros todos? - Existia um conceito antigo de uma entidade superior a todos os homens que possuia uma espécie de controle de criação sobre a humanidade e o universo. De uma maneira muito nebulosa, de uma maneira que não é muito clara pra mim, existia uma relação entre esse conceito de uma entidade superior com o conceito de espírito ou alma, como se você carregasse algo além da matéria dentro de si. Em algumas crenças, acreditava-se que a alma não era perecível, como o corpo era. Então ainda que alguém morresse sua alma ainda existiria em outros planos, podendo voltar a esse plano ou não. Eu sei que é muito confuso, inclusive pra mim, mas as suas visões sobre tal mulher podem estar relacionadas com essa ideia também. Mas nós nunca saberemos de fato. - Então deixa eu ver se eu entendi tudo. Eu ouvi essa obra, comecei a ter todas essas visões sobre essa mulher e não existe forma de saber quem é que fez a obra ou quem é essa mulher ou procurar alguém que possa explicar isso? E você, o historiador, também não sabe como resolver isso, como voltar à vida padrão? Exatamente isso? - Eu não sei.
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O perdiz 05:42
Quanto tempo se passou desde que estou sentado aqui dentro? Muito tempo. Tempo demais. Ao mesmo tempo, talvez não. Pode ser que eu acabei de conversar com o historiador e acabei de chegar aqui. Os sentimentos, amor, sonho, abandono, mudança. São muito mais profundos que arte. Mas será que são mesmo? Ao fim da minha experiência com a caixa eu lembro que estava me sentindo como se algo estivesse sendo tirado de mim. A ânsia pelo fim daqueles sons, daquela música, criaram uma elevação no meu ser. Talvez era exatamente isso que as pessoas sentiam com a chegada do seu fim. O fim é a mudança. E agora eu vou mudar e continuar mudando eternamente. Morrer, talvez. Não sei ainda. Primeiro preciso entender o que eu quero fazer agora. Quanto de combustível eu tenho? O suficiente pra voltar no ponto de partida? É. Mas nem eu sei mais onde é o ponto de partida. Talvez voltar no planeta do vendedor de combustível, passando por Karam para contar as novidades para as pessoas que conheço. Talvez seja isso. Talvez seja isso. Essa experiência me trouxe de volta às pessoas e não necesseriamente perto da arte, perto do passado, dos meus ancestrais ou algo do tipo. Mas perto de mim mesmo. Talvez a arte seja feita pra isso. Ah, mas quem se importa? Ninguém desse universo sabe o que é isso que aconteceu comigo. Mas ao mesmo tempo talvez alguém saiba. Mas da mesma forma, isso me traz uma sensação física de satisfação. Eu me sinto bem. Eu me sinto bem. Eu me sinto bem. O universo é um céu e é um mar. E dentro de mim existe esse universo que pode criar, que pode voar, que pode nadar e que pode continuar existindo eternamente. O tempo não é senão uma ilusão. Quanto tempo eu estou aqui? Quem se importa? Como se alguém se interessasse além de mim. Não, a caixa criou interesse nas pessoas com quem eu conversei. "Volte aqui pra me contar o que aconteceu depois", eles disseram. E a mulher, será que ela ainda está por aí? E o que ela acharia de mim? Talvez ela sentiu tudo isso que eu senti. Talvez ela esteja sentindo agora nesse exato momento o que eu estou sentindo agora também. Mesmo que seja no passado. Tudo acontece ao mesmo tempo simultaneamente para o universo. Não existe passado, presente ou futuro. Então eu e ela somos o mesmo, e estamos juntos nesse exato momento. O que ela gostaria que eu fizesse? Eu não sei. Mas eu posso fazer tudo. Menos voltar atrás. Eu não consigo mais ser o mesmo. Eu mudei. Felicidade. Mudança. Será que existem mais obras desse valor espalhadas por aí? Eu poderia procurar. Mas como se procura esse tipo de coisa? Eu não sei. Mas eu posso descobrir. Talvez procurar alguém pra desenvolver uma espécie de dispositivo para buscar e coletar tais caixas. Talvez elas sejam feitas de várias formas das mais diversas maneiras e com sons inacreditáveis dentro de cada uma. Eu não sei, eu não sei. Mas eu me sinto bem. Eu me sinto bem. Procurando pedras, que seja. Só um tipo diferente de pedras. Posso fazer tudo sozinho também, mas pra que? Se eu posso compartilhar isso com essas pessoas? É isso. Que graça que tem existir sem amor, sem abandono, sem sonhos e sem as pessoas. Agora eu posso fechar os olhos e viajar por mundos do passado, do presente e do futuro. Eu posso entrar no sono e sair por outra porta da existência. É isso que é existir. Abrir a porta. Abrir a porta. A minha nave, o meu perdiz, ou serei eu perdiz? Felicidade. Felicidade. Mudança. Felicidade. Sim. É preciso dizer sim a mudança e a felicidade. Já consigo ouvir os animais por toda a galáxia. Já consigo ouvir as pessoas por todo o universo. Já consigo ver as novas águas mudando para ar e mudando para águas de novo. Já consigo ver novas pessoas e novas coisas de todos os tipos nascendo. Algo novo, ele disse. Já consigo ver pra onde vamos. Vamos voltar ao início. Vamos voltar a morrer. Vamos voltar a nascer. Vamos voltar a ser o que sempre fomos. E mudar de novo, e mudar de novo. A mudança é a felicidade. Já consigo ouvir tudo ao meu redor se transformando. Já consigo ouvir os pássaros. Sim. Eu ouço o perdiz. Eu ouço o perdiz. Obrigado. Obrigado por tudo. Iniciar decolagem.

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"O Extraordinário Voo do Perdiz" conta a trajetória de um homem de um futuro muito distante que encontra um artefato antigo - cujo conteúdo é a trilha sonora do filme "O Piano"(1993), composta por Michael Nyman.

credits

released March 3, 2015

Produzido por Vitor Brauer.

O capitão: Vitor Brauer
O cara do combustível: Daniel "Kennedy" Meirelles
A mulher: Paola Rodrigues
O cara do software: Jonathan Tadeu
O historiador: Marcelo Diniz

A trilha sonora do filme "O Piano"(1993) é usada na íntegra sem mudança na ordem original e os créditos vão todos para o compositor Michael Nyman.

P.S.: O motivo pra esse disco não estar nas plataformas de stream é por causa dos copyrights dos samples.

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Vitor Brauer Governador Valadares, Brazil

Um mineiro de Governador Valadares que é compositor, produtor, membro das bandas Desgraça, Ginge, Lencinho, Lupe de Lupe, Tristeza Não Tem Fim e Xóõ, e criador e integrante do movimento Geração Perdida de Minas Gerais.

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